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Foto do escritorMarcela Chanan

O tanque de areia e o direito de brincar.

Por Marcela Chanan


Materiais levados para a vivência com a Ute Strub.

Em 2022 estive em uma vivência com a Ute Strub que tem um trabalho belíssimo com areia e crianças de todas as idades, neste dia refleti sobre nossa realidade (brasileira) e as minhas pesquisas sobre o brincar com areia no espaço educativo (decidi escrever no blog, mas não conclui, retomei esse ano). Me surpreendi, pois já faz mais de 10 anos que me dedico a observar e estudar a relação de bebês e crianças (do berçário ao 5º ano do ensino fundamental I) com esse elemento da natureza. E tudo que aprendi sobre essa prática foi por iniciativa própria, pelo necessidade de dialogar com minhas referências e principalmente com o território. Ser professora-pesquisadora é isso! É criar, fazer, experimentar, observar, registrar, refletir e partilhar (sempre aprender), mas sem reproduzir. Pesquise sua prática por interesse e curiosidade e não por cobrança ou modismo. Esse ano mesmo em uma conversa na escola com a minha coordenadora, disse que estava pesquisando documentação pedagógica e ela perguntou: "Você está fazendo mestrado? e eu respondi "Não, eu pesquiso minhas práticas por conta própria, todo ano escolho um tema e também vou aprimorando as pesquisas anteriores". Entende? Outra coisa: as fotos do texto não são ilustrativas, observe com olhar pesquisador, as imagens dizem sobre coisas que não estão no texto de forma explícita.


Desde o início do meu percurso profissional trabalhei em nove espaços educativos com possibilidades distintas de brincar com areia: tanques de areia ao ar livre em diferentes formatos (circular, retangular, com e sem grade, grande/pequeno, com e sem cobertura etc); o chão do parque com areia (na sua totalidade ou em partes específicas), caixas de madeira por volta de 1m x1m com tampas fixas no parque e até areia colorida.


Minha preferência são os tanques de areia ou espaços criados com areia, acredito que toda escola da infância precisa ter um. As bacias/bandejas/mesas de experimentação são recursos potentes e complementares, mas não substitui a experiência de estar com o corpo todo em um espaço amplo com areia compartilhado com outras crianças, são experiências distintas. E me refiro aqui sempre a areia natural, pois considero um elemento da natureza, assim como brincar com a terra, a água, as plantas, as sementes, as pedras, etc. A areia colorida não está entre minhas escolhas, acho fria, artificial e não toma forma; para quem acha interessante e encontra uma intenção, talvez possa ser uma possibilidade a mais.

Foi só a partir do momento em que comecei a aprofundar meus saberes sobre o brincar espontâneo (livre, no sentido de não ser dirigido) e a cultura infantil que olhei com mais atenção para o que as crianças faziam no tanque de areia ou nos espaços amplos com areia, afinal o que acontece lá? Quais materiais e objetos potencializam esse brincar? Como o espaço para explorar a areia com o corpo todo contribui para o desenvolvimento integral? Como interagem com o espaço, os materiais e as outras crianças?

O projeto Território do Brincar, a Casa Redonda e a Te-arte são as bases das minhas referências, depois o tema Criança e Natureza chegou com força na sociedade, também estudei na área da psicanálise o Sandplay que é um brincar terapêutico, pesquisei os tanques de areia dos Parques Infantis de Mário de Andrade e me inspiro no trabalho da professora Lea Tiriba que fortaleceu meu interesse em dialogar com os saberes dos povos tradicionais para pensar o contexto das nossas infâncias, por uma educação ecológica, popular e libertária. Estamos em um país tropical, rico em natureza e essa relação com o chão, a terra, a areia é ancestral.


Nesse percurso, já escrevi no blog antigo sobre Brincar no parque com areia, água e sucata , Misturas e investigações, Desenhar com areia e no blog atual Infância e natureza, essas publicações se entrelaçam e complementam com o que estou trazendo aqui e indiquei a leitura de outras durante o texto e no final.

O tanque de areia na escola faz parte de pensar a criação de ambientes qualificados e diversificados ao ar livre, garantindo o direito das crianças de brincar e de contato com a natureza em ambientes abertos. Os espaços com areia são lugares de construção, interação e relação consigo mesmo, com os outros, com os objetos e com a natureza. Lugar de produção de cultura infantil, de criatividade, imaginação, invenção, concentração, pesquisa, troca e muitas aprendizagens. Brincar é coisa séria!


Na minha atual realidade os bebês brincam no tanque de areia sem calçado e sentem o vento, escutam e observam as plantas balançarem, apreciam o céu, o sol, a sombra; encontram o ambiente organizado com diversidade de materiais (não é uma caixa de brinquedo que vira ali sem intenção, não é passatempo) e escolhem com o que e como vão brincar, se sentem livres, podem explorar com o corpo todo e o tempo (cronológico) passa em outro tempo (os adultos também precisam aprender a desacelerar, silenciar e observar). Eu e minha parceira também tiramos o calçado e entramos na areia com eles.


É preciso compreender a importância que tem um tanque de areia, valorizar e colocar o direito da criança em 1o lugar.


O projeto Prioridade Absoluta do Instituto Alana, contribui com a visibilidade e maior entendimento do art. 227 da Constituição Federal e traz em uma publicação impressa chamada "Como fazer valer os direitos das crianças" e na página 18 diz:


Sempre que uma unidade escolar não oferecer espaços adequados para a brincadeira - como áreas verdes, caixas de areia e parquinho para Educação Infantil (...) será possível exigi-los das autoridades competentes".


Para saber mais sobre prioridade absoluta na prática consulte o ECA, parágrafo único do art.4º. No documento do MEC "Critérios para um Atendimento em Creches que Respeite os Direitos Fundamentais das Crianças" cita o contexto com areia duas vezes em "Nossas crianças têm direito ao contato com a natureza - nossas crianças tem oportunidade de brincar com areia, argila, pedrinhas, gravetos e outros elementos da natureza" e "Nossas crianças têm direito à higiene e à saúde - o espaço externo da creche e o tanque de areia são limpos e conservados periodicamente de forma a prevenir contaminações" com autoria de Fúlvia Rosemberg e Maria Malta Campos.


Areia não é sujeira, é vida e alegria!

Em alguns espaços educativos os gestores se negam a ter tanque de areia ou algum espaço mais amplo com areia, pois dizem que dá muito trabalho devido ao cuidado e manutenção. É preciso cobrir todos os dias ou mesmo providenciar uma cobertura (telha), mexer na areia com rastelo, tirar a lona/a tampa para tomar sol e higienizar a areia com frequência (até a necessidade de substituí-la), mas essa é uma das funções da escola: garantir os direitos de bebês e crianças.


É fundamental ter um bom profissional para construir o tanque com drenagem eficiente (não é só limpar um espaço e jogar areia, o chão precisa ser preparado), assim a água da chuva não empoça; escolher um espaço iluminado facilitando a sua secagem e providenciar uma lona ou uma tela mantendo a areia longe de animais - nesse caso é bom ter uma referência para mostrar ao prestador de serviço, pois a estética desse ambiente também precisa ser pensada. O tanque de areia deve fazer parte do projeto pedagógico da escola (assim como todos os espaços que os bebês e crianças usam), ser planejado, discutido, projetado, inclusive com a participação das crianças. O espaço educa e tem uma estética intencional. Também há a possibilidade de reformar e potencializar o que já existe. A escolha do parque com chão de areia tem uma complexidade maior de higiene e cuidado, pois fica aberto é preciso manutenção diariamente.


A higienização da areia é essencial, mas das crianças também, por isso é importante ter escovinhas de cerdas macias para limpar pernas e pés, pia ou torneira próxima para lavar as mãos e até os pés se a areia estiver grudada e não sair com a escovinha (se a criança passa o dia todo na escola os pés precisam ser lavados ou mesmo o corpo todo dependendo de como foi a exploração).


Entre as experiências que vivi, percebi que:

  • os bebês e crianças pequenas de 1/2 anos aproveitam bem os tanques menores e as experiências com bacias/caixas/bandejas/mesas de experimentação;

  • as crianças de 3/4 anos (turma de 24 crianças na minha atual realidade) já precisam de um tanque mediano ou que seja aberto e haja outros elementos para composição desse cenário de brincar, pois as crianças já têm uma grande movimentação corporal e o jogo simbólico muito presente;

  • as crianças maiores de 5 a 10 anos criam brincadeiras muito elaboradas em tanques de areia abertos ou uma parte do parque com areia, as escolas que tinham essa estrutura foram as que proporcionaram um brincar rico em narrativas e construções, pois incluem diversos elementos do ambiente, dão novos sentidos aos espaços e materiais grandes de forma muito elaborada com pneus, caixas, tábuas, tonéis, tecidos grandes etc.

Portanto, as características do tanque de areia ou espaço com areia interferem na qualidade do brincar. Lembrando que essa observação é pessoal, a partir do meu percurso profissional, as crianças transitam entre essas experiências (isso vai depender das vivências anteriores e do trabalho pedagógico em geral realizado com elas e que se apresenta nesse brincar). Outros educadores que veem o tanque de areia como potência podem ter outros olhares (inclusive me escrevam mensagens ou marquem o @culturainfantil se compartilharem alguma reflexão ou registro).


Dito isso, a escolha da areia natural também impacta nas vivências que os bebês e crianças terão, pois cada uma faz um tipo de convite diferente para brincar dependendo de suas características (mais fina, mais grossa, média, há cores naturais diferentes). Ah, mas qual comprar? Pesquise! Faça testes, experimente, faça uma pequena coleta ou compre pequenos sacos com diferentes texturas e cores naturais, desperte o desejo de pesquisa também no grupo docente, proponha um momento formativo, coloque-os para brincar e depois faça uma discussão, vocês podem optar por ter uma areia no tanque e outra para brincar com as bandejas e bacias, por exemplo, depende da intenção.


Quem convive com tanque de areia e bebês ou crianças (de todas as idades) sabe que é um dos espaços preferidos, que passam longo tempo brincando, testando, experimentando e explorando com interesse, curiosidade e tranquilidade. São momentos de paz, entrega, prazer, relaxamento, conexão e investigação. Algumas crianças que se mostram agitadas e não se concentram facilmente durante a jornada cotidiana encontram nesse brincar um lugar de calmaria, assim quando interagem com a terra, a água e outros elementos naturais.

Reflita sobre o tempo que os bebês e crianças passam EMPAREDADAS nas escolas, principalmente nas grandes cidades, na maioria das vezes entre concreto, plástico e com uma visão higienista. Essa concepção (tanto dos profissionais , quanto das famílias) e a fala "dá muito trabalho!" é usada como mais um dos motivos de gestores não providenciarem um espaço com areia na escola, mas também acontece o contrário, a escola/os gestores garantem o tanque, mas a criança ou bebê não frequenta o espaço porque a professora não leva: já escutei algumas justificativas como porque "vão colocar na boca", "vai sujar os pés e encher a roupa de areia", "as famílias reclamam" ou "não dá para tirar a areia de todo mundo". Sim, tem momentos em que precisamos de apoio e aos poucos vamos ensinando a não jogar areia no rosto, a se limpar e colocar o calçado com autonomia, recolher os materiais etc. E pode acontecer de alguns bebês e crianças estranharem a sensação da areia nas mãos, nos pés e no corpo nos primeiros contatos, então é bom levar uma esteira ou tecido para colocar por cima da areia, assim aos poucos vão experimentando e decidindo por si mesmas quando se sentem a vontade para estar na areia.


No caso de resistência, é preciso que a coordenação pedagógica organize os apoios necessários e faça um trabalho formativo com a equipe de professores(as), como já citei, colocando-os(as) para brincar com areia e sentir no próprio corpo - trazemos concepções, experiências e marcas da nossa infância que impactam no nosso fazer. É interessante pesquisar sobre a areia (De onde vem? Do que é feita? São todas iguais?). Depois experimentar com os bebês e as crianças, registrar, refletir e fazer uma documentação pedagógica - que é nossa grande aliada, proporcionando uma conversa em reunião de pais compartilhando também todos os cuidados que a escola e as professoras tem com a areia e as crianças. Inclusive, é possível proporcionar vivências com as famílias.


Os bebês e as crianças aprendem com o corpo todo, precisamos ampliar essa experiência para além das mãos. Volto a dizer, estamos no Brasil, país tropical, natureza, calor a maior parte do ano (mas no frio também levo no tanque de agasalho e calçado, esse último não é uma regra, depende), então é o corpo todo com todos os sentidos e muita liberdade potencializando as aprendizagens e o desenvolvimento. Depois de tanto tempo observando o que as crianças fazem e criam em um tanque de areia, acho limitante o acesso apenas a areia em uma bacia, pois com o corpo todo as vivências ganham novas sensações como correr na areia, enterrar o corpo todo, girar, rolar, enterrar os pés, cavar buracos, fazer montanhas etc.

Se a escola realmente não tem espaço para um tanque de areia, uma realidade compreensível, quem sabe uma caixa de areia ou mesas de experimentação, enfim, outras possibilidades para garantir a brincadeira. E veja, não sou contra, tenho experiências distintas desde bebês com acesso livre ao tanque de areia, quanto de apresentar a areia em explorações com as bacias para depois levá-los ao tanque de areia ou mesmo mesclar as propostas a depender da intencionalidade.

O brincar com areia nasce das crianças - não direcionamos, planejamos como vamos fazer o convite, o tempo (no sentido de qual momento da rotina), os materiais e suas as possibilidades, mas são elas que criam suas narrativas e investigações. A partir da observação, da escuta atenta e sensível, pensamos os próximos passos tendo os bebês e as crianças como guias do nosso planejamento garantindo continuidade e sentido. É um brincar de dentro para fora onde a criança nos ensina sobre ela.


O que norteia meu olhar para o brincar é a compreensão da sua importância na vida de bebês/crianças, a relação com a natureza, a arte efêmera (LandArt), o jogo simbólico, o movimento livre, o brincar livre, a cultura infantil, o brincar heurístico e a concepção do material como linguagem.


Caixa com os materiais selecionados para areia. Curioso, foi conferir um por um.

Os melhores brinquedos para brincar na areia não são aqueles kits de praia padrão. São os materiais abertos/não estruturados/largo alcance/do cotidiano (seja lá como você chama), utensílios de cozinha, panelas, formas de bolinho e empada, colheres, potes diversos inclusive reaproveitados (gosto muitos dos transparentes, tento tirar o rótulo de todos para uma estética mais agradável), tecidos, recortes de canos pvc etc. São objetos simples, considere também adquirir objetos da cultura indígena e afro-brasileira para compor esse brincar. E pode-se acrescentar água, gravetos, sementes, flores e outros elementos da natureza. Até meu corpo já virou brinquedo, objeto de exploração com areia para compor uma pesquisa infantil (tem alguma foto aqui pela publicação que uma bebê ficou passado as mãos com areia na minha canela de várias formas).


Para as professoras que já trabalham com uma imagem de criança capaz, criativa e protagonista dos seus processos de aprendizagem com uma pedagogia participativa, sabe que esse olhar para a infância está presente no cotidiano em todos os contextos oferecidos e nas relações entre adulto e bebê/criança, portanto elas já têm experiências anteriores que trazem para o brincar na areia. O trabalho não acontece somente na areia, é preciso um olhar integral para todas as propostas com as múltiplas linguagens, tudo está entrelaçado, a criança não fragmenta suas experiências.


Esse brincar envolve diversos conceitos como textura, peso, volume, temperatura, tamanho, vazio e cheio, dentro e fora, molhado e seco, absorção da água (que eles acham mágico), enterrar e desenterrar, construir e desconstruir, comparação, esconder e achar, dentre outros, o pensamento acompanha a ação (olho, mão/corpo). E o que me chamou atenção foi que desde o berçário até a ensino fundamental I as experiências investigativas com os materiais (pequenos) abertos ou não estruturados se repetiram. Confira as fotos a seguir.

Bebê de 1 ano
Crianças de 5 a 9 anos

O corpo também tem liberdade para se movimentar conforme desejar, um corpo ativo que abaixa, levanta, agacha, senta, deita, corre, salta, rola etc. Um brincar recheado de descobertas, invenção e comunicação: ora o silêncio reina, ora as crianças falam bastante sobre o que estão fazendo; os bebês balbuciam e sorriem animados; nos convidam a participar; a língua vai para fora da boca, a mesma fica entreaberta pela descoberta; o dedo do pé se ergue, a testa franze, o olhar fala (uma imersão); de repente desenhos com gravetos, marcas na areia e esculturas, são muitas as linguagens expressivas.


Brincar com areia é um brincar genuíno, poderia escrever um texto enorme falando da sua importância, porém já existe bastante conteúdo para ser pesquisado e estudado com as referências que trouxe aqui e os demais textos do blog. O foco foi defender que os espaços educativos providenciem tanques de areia com qualidade garantindo o direito de brincar.


*Todos os direitos autorais das imagens e texto reservados para Marcela Chanan. É proibida sua cópia sem autorização prévia. O compartilhamento da publicação na íntegra diretamente do blog (link e via redes sociais) é livre. Para impressão é obrigatório colocar a referência.


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