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  • Foto do escritorMarcela Chanan

Brincar com água: fluidez, entrega e refúgio.

Por Marcela Chanan



Um dia desses de muito calor, substitui uma professora em um grupo de crianças de 2 e 3 anos e ao me perguntar o que iria propor durante a tarde, a primeira coisa que me veio à cabeça foi brincar com água!


De fato o brincar com água estava pulsante, pois no semestre passado proporcionei diversas vivências em relação com a natureza ao agrupamento que tive regência, mas não brincamos com água, faltava viver essa experiência tão rica e muitas vezes limitada às crianças, elas tentam em diversas situações (alimentação, lavar as mãos, beber água, etc) que tem contato com a água nos mostrar que tem interesse em pesquisar esse elemento natural. Então, aproveitei o dia ensolarado, separei shorts e bermudas para trocar as crianças assim que acordassem, pois estavam de calça, solicitei toalhas a agente escolar, peguei bacias emprestadas de outro agrupamento, separei alguns potes de brincar na areia que estavam na sala (selecionando com intencionalidade cores e formatos) e alguns animais da caixa de brincar.


Assim que acordaram contei que iriam trocar de roupa, para continuarem descalços (eu mesma tirei o calçado e também permaneci descalça), tomarem o leite no refeitório e na volta iríamos brincar com água. Inclui as crianças na organização dos materiais e solicitei ajuda para levá-los para área onde fica a torneira, atravessamos o parque cada um com uma bacia, pote ou caixa de animais. Chegando no espaço, posicionei as bacias, os potes e os animais na parte com terra. Mostrei a torneira, que fica na parte acimentada e enchi bacia por bacia.


De início se mostraram um tanto receossos de se molhar, mas mediei essa interação com os materiais e o espaço, disse para sentarem no chão, que não tinha problema se molhar. Alguns estranharam molhar as mãos e a terra grudar, queriam lavar e mostrei que era só mergulharem as mãos na bacia.


Dentre as pesquisas deste grupo, Ruth colheu diversas folhas e colocou na bacia misturando com a água para fazer comidinha, enquanto outra criança misturava com as mãos e as demais usavam utensílios de cozinha. Vanessa logo adentrou a bacia com os pés e explorou outros objetos de cozinha como funil, concha, colher e forma de gelo, até experimentou a água! Depois avisei que não daria para beber porque logo estaria cheia de terra, mas em um primiero momento foi importante. Quem nunca tomou água do mar? (risos)

Outras crianças se envolveram em explorar os animais no água, pareciam se perguntar "Por que alguns afundam e outros boiam?". Depois descobriram que dava para colocar terra na bacia e Manoel cavou concentrado em sentir a terra molhada, cavou com a colher e com as mãos.


Enquanto isso a bacia de comidinha foi virada por Ruth com grande alegria, logo começaram a cavar a terra e pular nas poças! E mais uma bacia virada! Foram percebendo a terra se transformando em lama, a água ficando escura e as pernas tingidas.


O encher e esvaziar parece ter chamado a atenção de Vanessa, que fez essa ação várias vezes. Leo explorou as gotas, colocava o dinossauro na água e depois levantava a mão, observando esse gotejar. Carregar pequenos recipientes cheios de água foi um dos desafios de Nuno, pois conforme andava a água caía e isso o deixava curioso.


Três bacias viradas! Lá fomos nós enchê-las! A torneira fica no alto, estava sem um bico adequado e espirrava com força, Ruth adentrou o balde que enchia e começou a brincar com o jato de água espirrando em Fabiano, Leo, Vanessa e Nuno, pura alegria e empolgação. Como o jato era forte, colocar a mão, um pote, a bacia ou outro objeto já bastava para espirrar em quem estava por perto. Se divertiram muito com isso e com as tentativas de pegar a água com as mãos.


Me olhavam como se perguntassem "Pode se molhar?" e eu não falava nada só sorria e vivia o momento com o grupo, até que Ruth se lançou embaixo do jato de água e se molhou toda, as crianças buscaram o meu olhar e dessa vez falei "Tudo bem, viemos brincar com água e depois vocês vão trocar de roupa!".


Toda essa agitação e felicidade, volto com as bacias cheias e observo Bianca, que não quis se molhar, observando o caminho que a água fazia ao escorrer pelo chão. Fabiano também não quis se molhar, só os pés e mãos, passou longo tempo com a bacia cheia de água e os animais, parece que explorava a sensação de mexer com água, sua lisura e maleabilidade.

Voltamos a torneira e dessa vez Ruth entrou de cabeça, pensei na sensação de uma cachoeira! Leo ficava por perto com a língua pra fora pra ver se consegue tomar a água espirrada. Nuno entrou de costas e saiu correndo gritando tamanha empolgação. Algumas crianças começaram a brincar de jogar água uma nas outras, o que incomodou quem não queria se molhar por inteiro e foi preciso uma mediação nesse momento.


Ruth começou a fazer outra comidinha em um potinho, raspando o chão de lama com uma colher e passou longo tempo concentrada nesta ação. Vanessa entra em uma das bacias e começa a testar os recipientes para pegar água na bacia e jogar na própria perna, rindo da sensação. Tantas coisas maravilhosas acontecendo ao mesmo tempo, um desafio me atentar a tudo e quando olho para Bianca lá está ela com um pote transparente na mão e um medidor pegando pequenas doses de água da grande bacia e colocando aos poucos, com todo tempo, disposição e envolvimento

Ruth continua a fazer sua comidinha, mas senta no chão no meio da lama, Vanessa vira mais uma bacia, Nuno e Manoel começam a cavar bastante a lama e colocar na bacia com os animais. Nuno vai fazer outra coisa e Manoel se dedica a enfiar a mão no fundo da bacia e pegar a terra que está lá, repete essa ação muitas vezes sentindo essa terra em um estado diferente, apertando-a e sentindo escorrer pelas suas mãos, depois vira a bacia e cava a terra com as mãos.


Leo mistura terra na sua bacia e não consegue mais ver com nitidez os animais que estão lá dentro e brinca com essa descoberta de pegar um a um. Ruth tira a lama de dentro do seu pote e a sensação parece tão boa que começa a passar a lama no lado de fora do pote por muitas vezes, como se moldasse aquele pote com a lama deixando suas marcas.

No fim, falamos sobre o desperdício, então a brincadeira acabou quando a última água das bacias acabaram. E assim começaram a correr um atrás do outro para jogar água que pegavam da torneira aberta em que eu lavava os potes, já preparando os materiais para voltarmos à sala. Me ajudaram a pegar os animais para lavar, optei por não solicitar muita ajuda deles, pois estavam tão felizes naquela brincadeira. Uma criança molhou toda a camiseta e se mostrou incomodada, perguntei se queria tirar e disse que sim, pronto, todos quiseram ficar sem camiseta e correr mais ainda de alegria pelo parque.


Estava tão divertido que eu mesma queria mergulhar debaixo daquela torneira e correr atrás delas para jogar água e também ser molhada, elas jogaram um pouco de água em mim, mas precisei dizer que eu não tinha outra roupa para trocar e por isso não poderia me molhar, vontade não faltou, me lembrou os tempos de escola que nos dias quentes eu colocava a cabeça debaixo da torneira, molhava todo cabelo e voltava para sala.


Um agente escolar observou a agitação e subiu para olhar as crianças enquanto eu lavava e organizava o espaço. Deixei tudo secando lá mesmo e voltamos para sala, comecei a troca por quem estava mais molhado enquanto os outros brincavam, o agente escolar me ajudou novamente ficando de olho nas crianças enquato eu secava, dava banho nos que precisam tirar a terra e trocava a roupa e a fralda. Observei que permaneceram calmos na sala referência e passaram o fim da tarde bem tranquilos, diferente de outras vezes que estive com o grupo.


Em apenas um dia, uma vivência, foi possível observar a riqueza que envolve esse fazer. Veja que os seis direitos de aprendizagem e desenvolvimento foram garantidos, os campos de experiências estão entrelaçados. Os conceitos básicos de uma pedagogia contemporânea estão presentes. O contexto de aprendizagem é simples, a transformação está no olhar e na postura do adulto.


A fluidez, a entrega e o refúgio são perceptíveis na forma como cada criança se relacionou com a água. Com refúgio, quero dizer, ter um tempo protegido da rotina corrida da vida e da escola, da rigidez do corpo e das ações controladas, de ficar consigo mesmo sem ser invadido.


As crianças precisam brincar com água, entregar seus corpos nessa relação sensorial e flexível. Viver essa experiência com prazer, liberdade, tempo e de acordo com seu ritmo. A partir do contato com a água, a criança experimenta, descobre e cria brincadeiras com as possibilidades de relação entre suas ações, a água e o objeto escolhido para compor essa exploração. Elas se divertem, conhecem e aprendem sobre as características da água, suas tranformações e as sensações que ela desperta. É um elemento que gera encantamento, revigora, cura e conecta com o eu interior, uma relação íntima.

Esse é um relato de experiência que quis compartilhar com vocês, pois estes momentos de brincar com a água muitas vezes não são valorizados na escola, são vistos como lazer sem intencionalidade e aprendizagens.

Os nomes das crianças são fictícios para me ajudar a narrar com mais clareza.




Confira essa live sobre O brincar livre


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